terça-feira, 28 de abril de 2015

Morte-vida Abujamra (ou sobre o que nos resta de humano)


Tomo para mim, sem o menor pudor de plágio existencial, a angústia de Abujamra sobre a desumanização dos ditos humanos – por convenção classificatória – contemporâneos. Acabo de ler um texto de Zé Celso, endereçado ao céu-inferno onde Abujamra provavelmente se encontra nesse exato momento, e, confesso, se há algo de comum entre nós, que nos faz humanos, é a emoção ao lê-lo. Toda experiência vivida para poder escrever algo parecido não é nada mais que experiências de amor em todas suas dimensões – política, afetiva, emotiva, de inteligência e, principalmente, a capacidade incessante de se indignar com o que está posto. Há uma semana, Abujamra fazia seu último Provocações e lá estava o que quero dizer com “incessante”. Ainda lhe restava indignação – doce, porém ainda indignação. Ao fazer o clássico ritual dramatúrgico-existencial de perguntar seguidas vezes “o que é a vida?”, ele tira o humorista Eduardo Stlerbitch (entrevistado naquela ocasião) do centro, transformando aquele programa numa espécie de oásis televisivo da verdade. Escorrem lágrimas do rosto do entrevistado, pois responder o que é a vida não é nada simples, uma vez que, ainda que a pergunta não suscite isso diretamente, falar da vida é, antes e acima de tudo, falar da própria vida. Não podemos falar o que é a vida a partir da experiência de outro. Abujamra sabia disso e por isso manteve esse ritual por vários anos do programa. Além de sua habilidade dramatúrgica, estava ali uma espécie de doçura desromantizada, aspecto, ao meu ver, do mais marcante ao vê-lo em cena (sim, ele sempre estava em cena). Acredito que são poucos os que conseguem e que fazem disso sua vida, mesmo que não planejada como meta, mas como a única forma que lhe é possível de permanecer vivo enquanto humano – ativo e doce, crítico e sensível, indignado e compassivo, político e artista.
Tenho estado num furacão de sensações distintas, das do intelecto às da poesia, da fruição artística à disciplina das obrigações cotidianas. Coisas que fazem com que você compreenda cada vez mais e cada vez menos o que lhe rodeia, na medida em que sua vontade de mudança do mundo não compreende, da maneira desejada, as possibilidades reais de mudança. A presença de Abujamra aqui é de extrema importância. Em mais uma edição do Provocações, ao entrevistar Rubem Alves, aquele oásis da verdade aparece outra vez. Rubem Alves, já muito velho, quase no fim da sua vida, sabia que seria provocado, obviamente. No entanto, pareceu não ter previsto que aquilo que lhe faz enquanto educador (e no seu caso, como humano em si) seria o alvo principal das provocações de Abujamra. Ao ser perguntado se a felicidade é uma ideia velha, Rubem Alves responde algo que só ele poderia responder e diz que enquanto houver prazer e alegria nos pequenos momentos, haverá felicidades e não felicidade. Esta seria muito grande e gananciosa (interpretação minha). Ora, Rubem Alves estava ali falando sobre o que ele tinha sido durante toda sua vida, um educador humanista, que valoriza a alegria, o prazer, o olhar e o cuidado na educação. Toda sua subjetividade estava ali à mostra e Abujamra, bom provocador que era, lhe pergunta: “Quando é que você vai pra um convento (já que fala essas coisas tão bonitas – acréscimo meu)?”. A entrevista segue com coisas parecidas, como se houvesse uma negociação tácita entre o dito e o não-dito sobre as reais possibilidades de, finalmente, superarmos a “corrida entre a educação e a catástrofe” (frase de Abujamra na introdução do programa). Como se o pessimismo interpretado por Abujamra fosse um estímulo para Rubem Alves convencer-nos de que ainda nos resta algo de humano. Ao final da entrevista, mas também ao longo dela, a sensação que fica é que o humanismo comprometido com a mudança social – base da minha angústia que inicia esse parágrafo - , está vivo, ainda que fragilizado. Cabe a nós sermos cada vez mais Abujamra.
Por fim, deixo dois trechos que li hoje sobre a morte de Abujamra. O primeiro, de Monis, amiga querida que está longe, porém sempre perto, que foi resultado de uma pequena conversa provocativa no Instagram. O segundo, de Zé Celso, aquele texto ao qual me referi no primeiro parágrafo:

“Quem vai se aventurar em dizer alguma coisa sobre esse mundo? O provocador diz sem querer dizer. Esse zelo nos faz perceber que quem provoca já diz tanto, já se aventurou, já viveu, já tentou. Ele diz o mais importante à sua maneira: na forma do não-dizer, de tudo questionar.[...] Nesse movimento inquietante, se encontram muitas respostas que estavam por dentro e para além das provocações. Aqueles respostas que tiram o sono de muitos, mas que só podem ser encontradas quando nos abrimos para compreender a angústia dos outros, que no fundo também são as nossas, e dizem tanto sobre o mundo, às vezes sem nem querer dizer.” – Monis.


“Nesses dias em que a direita sai do armário e, diferentemente dos gays, sai fazendo questão de mostrar sua burrice, ressentimento, ódio, mau humor, falta de educação, cultura, espírito de vingança, enfim, os sentimentos humanos mais destrutivos e medíocres, tua figura humana, Abu, virou um imenso e necessário farol.” – Zé Celso.