Tomo para mim,
sem o menor pudor de plágio existencial, a angústia de Abujamra sobre a desumanização dos
ditos humanos – por convenção
classificatória – contemporâneos. Acabo de ler um texto de Zé Celso, endereçado
ao céu-inferno onde Abujamra provavelmente se encontra nesse exato momento, e,
confesso, se há algo de comum entre nós, que nos faz humanos, é a emoção ao
lê-lo. Toda experiência vivida para poder escrever algo parecido não é nada
mais que experiências de amor em todas suas dimensões – política, afetiva,
emotiva, de inteligência e, principalmente, a capacidade incessante de se
indignar com o que está posto. Há uma semana, Abujamra fazia seu último
Provocações e lá estava o que quero dizer com “incessante”. Ainda lhe restava
indignação – doce, porém ainda indignação. Ao fazer o clássico ritual
dramatúrgico-existencial de perguntar seguidas vezes “o que é a vida?”, ele
tira o humorista Eduardo Stlerbitch (entrevistado naquela ocasião) do centro,
transformando aquele programa numa espécie de oásis televisivo da verdade.
Escorrem lágrimas do rosto do entrevistado, pois responder o que é a vida não é
nada simples, uma vez que, ainda que a pergunta não suscite isso diretamente,
falar da vida é, antes e acima de tudo, falar da própria vida. Não podemos
falar o que é a vida a partir da experiência de outro. Abujamra sabia disso e
por isso manteve esse ritual por vários anos do programa. Além de sua
habilidade dramatúrgica, estava ali uma espécie de doçura desromantizada,
aspecto, ao meu ver, do mais marcante ao vê-lo em cena (sim, ele sempre estava
em cena). Acredito que são poucos os que conseguem e que fazem disso sua vida,
mesmo que não planejada como meta, mas como a única forma que lhe é possível de
permanecer vivo enquanto humano – ativo e doce, crítico e sensível, indignado e
compassivo, político e artista.
Tenho estado
num furacão de sensações distintas, das do intelecto às da poesia, da fruição artística
à disciplina das obrigações cotidianas. Coisas que fazem com que você
compreenda cada vez mais e cada vez menos o que lhe rodeia, na medida em que
sua vontade de mudança do mundo não compreende, da maneira desejada, as
possibilidades reais de mudança. A presença de Abujamra aqui é de extrema
importância. Em mais uma edição do Provocações, ao entrevistar Rubem Alves,
aquele oásis da verdade aparece outra vez. Rubem Alves, já muito velho, quase no
fim da sua vida, sabia que seria provocado, obviamente. No entanto, pareceu não
ter previsto que aquilo que lhe faz enquanto educador (e no seu caso, como
humano em si) seria o alvo principal das provocações de Abujamra. Ao ser
perguntado se a felicidade é uma ideia velha, Rubem Alves responde algo que só
ele poderia responder e diz que enquanto houver prazer e alegria nos pequenos
momentos, haverá felicidades e não
felicidade. Esta seria muito grande e gananciosa (interpretação minha). Ora, Rubem Alves estava ali falando sobre o
que ele tinha sido durante toda sua vida, um educador humanista, que valoriza a
alegria, o prazer, o olhar e o cuidado na educação. Toda sua subjetividade
estava ali à mostra e Abujamra, bom provocador que era, lhe pergunta: “Quando é
que você vai pra um convento (já que fala
essas coisas tão bonitas – acréscimo meu)?”.
A entrevista segue com coisas parecidas, como se houvesse uma negociação tácita
entre o dito e o não-dito sobre as reais possibilidades de, finalmente,
superarmos a “corrida entre a educação e a catástrofe” (frase de Abujamra na
introdução do programa). Como se o pessimismo interpretado por Abujamra fosse
um estímulo para Rubem Alves convencer-nos de que ainda nos resta algo de
humano. Ao final da entrevista, mas também ao longo dela, a sensação que fica é
que o humanismo comprometido com a mudança social – base da minha angústia que
inicia esse parágrafo - , está vivo, ainda que fragilizado. Cabe a nós sermos
cada vez mais Abujamra.
Por fim, deixo
dois trechos que li hoje sobre a morte de Abujamra. O primeiro, de Monis, amiga
querida que está longe, porém sempre perto, que foi resultado de uma pequena
conversa provocativa no Instagram. O
segundo, de Zé Celso, aquele texto ao qual me referi no primeiro parágrafo:
“Quem vai se aventurar em dizer alguma coisa sobre esse mundo? O
provocador diz sem querer dizer. Esse zelo nos faz perceber que quem provoca já
diz tanto, já se aventurou, já viveu, já tentou. Ele diz o mais importante à
sua maneira: na forma do não-dizer, de tudo questionar.[...] Nesse movimento
inquietante, se encontram muitas respostas que estavam por dentro e para além
das provocações. Aqueles respostas que tiram o sono de muitos, mas que só podem
ser encontradas quando nos abrimos para compreender a angústia dos outros, que
no fundo também são as nossas, e dizem tanto sobre o mundo, às vezes sem nem
querer dizer.” – Monis.
“Nesses dias em que a direita sai do armário e,
diferentemente dos gays, sai fazendo questão de mostrar sua burrice,
ressentimento, ódio, mau humor, falta de educação, cultura, espírito de
vingança, enfim, os sentimentos humanos mais destrutivos e medíocres, tua
figura humana, Abu, virou um imenso e necessário farol.” – Zé Celso.